A Lecar apresentou ao público a picape híbrida-flex Campo, modelo de cabine dupla exibido nesta quinta-feira (20) no Salão do Automóvel de São Paulo. A novidade adota um sistema de autonomia estendida em que o motor flex atua exclusivamente como gerador, permitindo que o conjunto entregue alcance estimado de 1.000 km. A proposta reforça a estratégia da fabricante brasileira de consolidar sua linha de veículos híbridos elétricos flex.
A marca também confirmou que a construção da fábrica em Sooretama (ES) continua programada para começar no primeiro trimestre de 2026, com início de operação previsto para 2027. Paralelamente, avança a negociação de transferência tecnológica com uma montadora chinesa, medida voltada a ampliar o acesso a plataformas eletrificadas e acelerar o desenvolvimento de novos produtos.
No plano comercial, a Lecar projeta encerrar 2025 com cinco concessionárias e expandir a rede para 150 unidades ao longo de 2026, incluindo parcerias com lojas de seminovos que comercializarão tanto a picape Campo quanto o sedan 459. A empresa também confirmou o programa de Compra Programada, que terá parcelas a partir de aproximadamente R$ 2.200, sem cobrança de juros, com opções de 48, 60 ou 72 meses.
A picape utiliza o sistema híbrido Range Extender, no qual o motor a combustão abastece o motor elétrico por meio da geração de energia, dispensando recarga externa e garantindo autonomia estimada de 1.000 km. O conjunto entrega 165 cv no motor elétrico, apoiado por um propulsor flex de 122 cv. Com 4,50 metros de comprimento, 1,82 m de largura e entre-eixos de 2,70 m, o modelo foi projetado para uso misto, oferecendo caçamba de 1,30 m e capacidade de carga de 650 kg.
A suspensão independente, a tração elétrica traseira e os pneus Pirelli Scorpion All-Terrain Plus reforçam a proposta de versatilidade, atendendo tanto ao uso urbano quanto a deslocamentos em vias de terra leves. O interior acomoda cinco ocupantes e reúne recursos de assistência semiautônoma de nível 2, como permanência em faixa, frenagem automática, piloto adaptativo e alerta de ponto cego. A bateria LiFePO4 é recarregada durante a condução, reduzindo a dependência de carregadores externos.
A Campo compartilha plataforma, arquitetura híbrida e diversos elementos internos com o Lecar Tático — SUV conceitual exibido no evento — e com o sedan 459. Essa estratégia de padronização visa acelerar os futuros lançamentos da marca, que pretende avançar para projetos de elétricos mais acessíveis depois de consolidar sua linha híbrida-flex.
O Tático, por sua vez, foi apresentado como estudo de design e engenharia, preservando a mesma base mecânica da Campo. O conceito prevê configurações 4x2 e 4x4, potência de 165 cv e autonomia semelhante à da picape. Com porte elevado, estrutura reforçada e cabine mais ampla, o modelo antecipa a entrada da marca no segmento de utilitários médios e servirá como referência para SUVs eletrificados de alcance mais amplo.
Completando o trio, o sedan Lecar 459 também adota o sistema híbrido-flex de autonomia estendida e fará parte do portfólio inicial da marca, integrando o mesmo programa comercial. A fabricante ainda não divulgou detalhes adicionais sobre o modelo.
Uma empresa brasileira e sua importância no setor
A presença de uma fabricante brasileira como a Lecar no setor automotivo tem um peso que ultrapassa a simples chegada de novos modelos ao mercado. Trata-se de um movimento que reorganiza expectativas, desafia a lógica histórica da indústria nacional e introduz uma rara combinação de ambição tecnológica, capacidade produtiva e visão estratégica. Em um país onde o setor automotivo sempre foi dominado por multinacionais, a entrada de uma marca nacional com uma proposta genuinamente alinhada às tendências globais de eletrificação abre uma fissura interessante no cenário industrial, convidando para uma reflexão ampla sobre soberania tecnológica, competitividade, emprego e inovação.
A primeira camada dessa importância é simbólica, e símbolos importam quando falamos de indústria. Desde os anos 1950, o setor automotivo brasileiro foi moldado por gigantes estrangeiras que instalaram aqui bases de produção, trouxeram tecnologias, treinaram mão de obra local e elevaram o país ao posto de uma das dez maiores indústrias automotivas do mundo. Mas essa narrativa sempre careceu de protagonismo nacional. Tentativas houve, do Gurgel ao Obvio!, passando por pequenos construtores artesanais. Ainda assim, nenhuma delas conseguiu inserir o Brasil de forma sustentável e competitiva em setores de maior valor agregado, muito menos nos de tecnologia avançada. A Lecar, ao se posicionar como fabricante de híbridos elétricos flex com engenharia própria e ambição de escalar produção, rompe esse padrão. É um raro momento em que a indústria automotiva brasileira deixa de ser apenas vitrine e passa a ser autora.
A relevância desse movimento fica ainda mais clara quando se observa a janela histórica na qual a Lecar surge. O mundo está no meio da maior transição tecnológica da mobilidade desde o advento do motor a combustão interna. Países disputam cadeias de suprimentos de baterias, dominância em plataformas elétricas, liderança em chips automotivos e acesso às matérias-primas críticas que movem o século XXI. Enquanto isso, o Brasil vive um paradoxo curioso: é uma potência do agronegócio, mas nunca foi protagonista nas tecnologias emergentes que moldam o futuro. O surgimento de uma empresa nacional com produtos alinhados às demandas da transição energética, como veículos híbridos de autonomia estendida, indica que o país ainda pode participar desse novo ciclo não apenas como consumidor, mas também como produtor.
A estratégia da Lecar dialoga diretamente com o contexto brasileiro, especialmente no uso do motor flex como extensão de autonomia. Esse é um exemplo de engenharia aplicada à realidade. Em países com redes de recarga amplas e políticas de incentivo agressivas, o elétrico puro se impõe de forma natural. No Brasil, o cenário é mais heterogêneo: grandes centros contam com infraestrutura crescente, mas vastas áreas rurais e rodovias extensas ainda tornam a dependência de recarga inviável para a maioria dos usuários. O sistema de autonomia estendida com motor flex resolve essa equação, oferecendo uma solução tecnicamente eficiente, ambientalmente mais limpa que modelos convencionais e, principalmente, adequada à infraestrutura nacional. A Lecar aparece como uma empresa que não tenta importar soluções prontas, mas desenvolve alternativas compatíveis com a geografia, os combustíveis e o cotidiano brasileiros.
Outro ponto crucial é o impacto econômico potencial. A instalação de uma fábrica em Sooretama, no Espírito Santo, projeta efeitos em cascata de geração de empregos diretos e indiretos. Cada posto criado na linha de montagem costuma multiplicar oportunidades em logística, serviços, fornecedores de peças, manutenção e treinamentos técnicos. Em uma região que não faz parte dos grandes polos automotivos tradicionais, como ABC Paulista ou Paraná, o impacto regional tende a ser ainda mais significativo. A presença de uma fabricante nacional cria a chance de diversificar economias locais, reduzir dependências de setores isolados e atrair novas empresas para formar um ecossistema próprio de suprimentos.
O fato de a Lecar negociar transferência tecnológica com uma fabricante chinesa acrescenta outra camada estratégica. A China domina o mundo dos elétricos por razões que vão desde a escala de produção até o domínio de baterias e plataformas. Quando uma empresa brasileira estabelece acordo nesse sentido, significa acesso a expertise rara e a possibilidade de adaptação para o contexto nacional. Essa ponte tecnológica pode acelerar a maturidade da marca e abrir espaço para que o Brasil participe das cadeias globais de valor, mesmo que inicialmente como integrador e desenvolvedor local. O país, tão acostumado a exportar commodities, poderia enfim começar a exportar conhecimento aplicado em veículos eletrificados.
A expansão comercial anunciada pela Lecar também ajuda a entender a amplitude de sua aposta. Chegar ao final de 2025 com cinco concessionárias e saltar para 150 no ano seguinte revela uma estratégia agressiva para ocupar território e garantir capilaridade. Isso não é apenas um plano logístico; é um gesto de confiança no mercado brasileiro. Além disso, a parceria com lojas de seminovos é uma jogada que reconhece a importância do mercado secundário para a aceitação de tecnologias novas. Consumidores tendem a confiar mais em marcas que se inserem também no ecossistema de usados, porque isso traz liquidez, reduz o medo de desvalorização e aumenta o acesso a públicos mais amplos.
No campo tecnológico, a padronização de plataforma entre a picape Campo, o SUV Tático e o sedan 459 é uma escolha inteligente. Plataformas compartilhadas reduzem custos, aceleram desenvolvimento e aumentam a possibilidade de escala produtiva, algo vital para uma marca jovem. Grandes fabricantes do mundo já trabalham assim há décadas, e ver uma empresa brasileira adotar essa estratégia desde o início indica maturidade industrial. A integração entre arquitetura híbrida, cabine e soluções internas permite que a Lecar desenvolva novos modelos com maior rapidez, reduzindo riscos e ampliando sua capacidade de resposta ao mercado.
Há também um aspecto cultural e psicológico nesse processo. A indústria automotiva brasileira, embora robusta em números, não possui marcas nacionais fortes que habitem o imaginário coletivo. Portugueses têm a UMM, indianos têm Tata e Mahindra, chineses têm dezenas, italianos têm Fiat, americanos têm uma lista quase mítica. O Brasil, apesar de gigante, ainda não possui um nome que represente sua identidade automotiva contemporânea. A Lecar pode ocupar esse espaço. Quando uma marca local desenvolve veículos alinhados às necessidades do país, cria-se um vínculo emocional que nenhuma multinacional consegue replicar com a mesma profundidade. A simples ideia de dirigir um automóvel brasileiro com tecnologia própria carrega um valor simbólico que toca na autoestima nacional.
A chegada da Lecar também tem potencial para provocar reações das montadoras tradicionais. Concorrência genuína é sempre catalisadora de inovação. Quando uma empresa nacional apresenta soluções alinhadas ao contexto local, pressiona as demais a revisarem estratégias, adaptarem tecnologias, oferecerem produtos mais adequados e repensarem preços. A presença de uma concorrente com DNA brasileiro pode estimular um novo ciclo de modernização. Mesmo que a Lecar ainda seja pequena comparada aos gigantes do setor, sua existência já provoca incômodo o suficiente para movimentar engrenagens adormecidas.
A escolha por veículos híbridos-flex coloca a marca em uma zona rara de competitividade. O Brasil já possui domínio sobre motores flex, infraestrutura de etanol e competências automotivas consolidadas. Integrar isso a sistemas elétricos avançados cria uma combinação quase exclusiva do país, algo que nenhum mercado estrangeiro pode copiar tão facilmente porque não possui condições locais equivalentes. A Lecar, se consolidada, poderia se tornar referência internacional em soluções híbridas adaptadas a biocombustíveis, uma área na qual o Brasil tem tudo para liderar. A picape Campo, com autonomia de 1.000 km e bateria LiFePO4 recarregada durante a condução, é o primeiro exemplo desse caminho. Trata-se de tecnologia aplicada com foco em eficiência, sustentabilidade e contexto real, não em promessas futuristas distantes da prática.
Outro aspecto importante é a construção de cadeia de inovação. Ao desenvolver sistemas híbridos, integrar baterias, criar plataformas e estabelecer acordos tecnológicos, a Lecar estimula a formação de mão de obra especializada. Universidades podem se aproximar, centros de pesquisa podem se fortalecer, empresas menores podem encontrar espaço como fornecedoras de componentes de alta tecnologia. Um ecossistema inovador não surge do nada; ele se forma quando uma âncora industrial o sustenta. A Lecar tem potencial para ser essa âncora em um setor que o Brasil há muito tempo observa de fora.
Por fim, existe um ponto geopolítico inevitável. Num cenário global cada vez mais marcado pela eletrificação, países que não dominarem tecnologias automotivas avançadas ficarão restritos ao papel de consumidores de alto custo. A entrada da Lecar no jogo representa a chance de o Brasil não perder o trem do futuro. Não se trata de imaginar a marca como uma gigante imediata, mas como um vetor que permite ao país ter ao menos uma voz própria em um mercado que está se redefinindo.
A importância da Lecar, portanto, não está apenas no lançamento de uma picape híbrida-flex ou na apresentação de um SUV conceitual. Está na abertura de uma nova fronteira industrial, na capacidade de gerar tecnologia, no fortalecimento da economia, na criação de identidade nacional no setor automotivo e na possibilidade real de o Brasil participar do debate global sobre mobilidade com mais que opiniões: com produtos. A marca representa uma promessa e, ao mesmo tempo, um teste. Se conseguir se consolidar, poderá transformar não apenas o mercado, mas a própria relação do Brasil com sua indústria. É um capítulo que ainda está sendo escrito, mas que já merece atenção por seu potencial de alterar o percurso da mobilidade nacional e posicionar o país em um futuro que, até pouco tempo atrás, parecia reservado apenas aos grandes centros tecnológicos do mundo.
